domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Escolha do Sexo e o Discurso Médico


Fonte: http://goo.gl/Uvf2tw
    Hoje iremos falar da cirurgia como sendo um dispositivo (de saber/poder) que leva o sujeito intersex a se enquadrar em um dos sexos que é determinado socialmente. A procura dessa determinação social do sexo se dá a partir de uma concepção de corpo “normal” estabelecida no mundo, e que consequentemente permeia o discurso médico fazendo com que a partir dessa concepção de corpo “normal” se justifique a total autonomia para se (re)construir e controlar os corpos intersex, tornando-os inaceitáveis dentro de um padrão social determinista. Essa “correção” dos corpos se dá muito mais em função do discurso social e médico de que é preciso identificar as pessoas a partir de um gênero (masculino ou feminino) do que em função (na maioria das vezes) da real saúde das crianças, aonde se procure contemplar em primeiro lugar o bem estar biopsicossocial desse indivíduo. Como nos diz o grande filósofo Platão, O homem é um todo integral e indivisível”, por isso o perigo de não pensar esse sujeito em todas as esferas constituintes possíveis de seu desenvolvimento. Veremos mais adiante, um pouco sobre o que vem a justificar a prática da cirurgia em crianças portadoras de anomalia de diferenciação sexual (ADS). Será que é válida a justificativa dada para as intervenções cirúrgicas em todas as crianças intersexuais?

    Iremos ver a partir de agora que o Conselho Federal de Medicina (CFM) já tem bem estabelecido todos os critérios e decisões sobre o adequamento sexual (do ponto de vista anatômico/funcional) dos portadores de ADS. E embora haja pessoas que sejam contra a redesignação sexual pautada predominantemente no prognóstico anatômico padronizado e na adequação funcional do sexo, por não contemplar as variadas e possíveis esferas do desenvolvimento citadas no parágrafo acima e dentro dessa esfera principalmente o desenvolvimento psicológico desse sujeito, a própria instituição como sendo um instrumento de poder na sociedade vem a estabelecer uma possibilidade de “verdade” sobre o sujeito, que determina como ele deve ser de acordo com padrões ditos “normais” pré-estabelecidos. O Conselho Federal de Medicina vem a sustentar em seu discurso essa possibilidade, como se sexo e gênero estivessem naturalmente inscritos no corpo. A Resolução Nº 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina, é um documento que guia a prática médica. Esse documento trás de forma definida as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Nesta Resolução constam todos os critérios para diagnóstico e realização de cirurgias em pessoas com genitália ambígua.(Para mais informações sobre esse discurso que procura normatizar os corpos dos indivíduos intersexuais ver link da Resolução).
    
   Segundo Foucault “o discurso veicula e produz poder”, poder esse que percebemos exercido sobre os intersexuais em forma de discurso como observado num artigo publicado por Méllo et al (2009) no XV ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO quando:

“os médicos indicam cirurgias “reparadoras” precocemente, afirmando que as crianças possuem a genitália incompletamente formada e que através da cirurgia as correções serão realizadas. Além das cirurgias, hormônios são prescritos, dilatações vaginais são feitas regularmente para que estes corpos possam ser normalizados.”


    Embora esse saber/poder instituído no/pelo discurso biomédico prevaleça na sociedade ocidental como uma forma de controle sobre os corpos intersexuais, não devemos negligenciar que se promova o acompanhamento multiprofissional do sujeito intersexuado; em prol de uma abordagem preventiva há que se considerar a especificidade e complexidade de cada caso, visto que, há também casos que precisam de intervenção urgente, por exemplo, quando ocorre risco de vida para a criança, conforme mostra a Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003 (link da resolução). Isso inclui reconhecer que em certos casos seja realmente preciso fazer a cirurgia na criança, sendo esta a orientação mais adequada a ser tomada. Contudo, há casos em que as possibilidades são mais diversificadas e, portanto, nestes não se deve ficar sob o jugo normalizador e controlador vigente, cuja primazia possa ser não bem a saúde integral da criança e sim a ansiedade dos envolvidos, em querer enquadrar a criança dentro de um padrão estabelecido como sendo “normal”.
    

Fonte: http://goo.gl/WFSvUE
   A partir de uma suposta “verdade” do sujeito a respeito do sexo, na medida em que a intersexualidade passa a ser concebida como consequência de uma desordem orgânica (hormonal, genética ou de outra ordem) e até mesmo como “doença” em si, o intersexo passa a ser inscrito nessa sociedade como uma questão biomédica. Uma das coisas que podemos notar é que na sociedade ocidental, o intersexo passa a ser circunscrito dentro dessa lógica, favorecendo, por exemplo, a tomada de decisão para se realizar cirurgias precocemente (como já citado a cima). Nesta sociedade a realização dessas cirurgias, de forma precoce, passam a ser consideradas como uma conduta legitima, socialmente aceita e como sendo a melhor opção. O Conselho Federal de Medicina determina em sua Resolução (Resolução Conselho Federal de Medicina Nº 1.664/2003) que a intersexualidade é uma “urgência biológica e social”, porém, há casos que não necessitam dessa urgência e que inclusive pode vir a causar danos que podem ser irreversíveis conforme nos mostra a própria Resolução citada à cima. Diante do comentado acima podemos perceber claramente as mudanças que ainda se fazem necessárias na esfera da atuação profissional em saúde.
    É digno de nota observar um artigo sobre A luta dos intersexuais na Suíça, onde o Dr. Meyrat argumenta que:

 “Considerava-se que era importante ter um tratamento rápido para inserir o indivíduo na sociedade e atender à profunda angústia dos pais. Posteriormente estudos começaram a demonstrar que os resultados da cirurgia não eram nem simples nem satisfatórios”.
    

   Quando elas são irreversíveis, essas intervenções podem de fato causar danos se o sexo atribuído não corresponder ao mental, e isso é o que é visto em depoimentos de pessoas que passaram por essa experiência dolorosa (para mais informações ver: A Luta dos intersexuais na Suíça).

    De acordo com Moara Santos e Tereza Araújo (2003) no artigo A Clínica da Intersexualidade e seus Desafios para os Profissionais de Saúde:

“Quando se enfatiza a urgência operatória, transmite-se a ideia de que existem riscos para a saúde da criança, podendo ser este um fator que confunde a família, pois, na realidade, é raro existir tal condição. Na maior parte dos casos, a decisão pode ser adiada do ponto de vista médico. A intervenção profissional em tal contexto de espera, dúvida e ansiedade provê alívio aos pais quanto ao sexo no qual criar a criança, endossando a proposta adotada pelo profissional médico, além de gratificar a equipe de saúde por ter 
condições de oferecer algum conforto para a família”.


      
Fonte: http://goo.gl/OP0r1e
    Este discurso biomédico de que estamos falando é pautado em padrões biológicos culturalmente delimitados, onde a função do médico é a partir desses padrões descobrir qual o “verdadeiro” sexo da criança intersexual. Isso sugere uma suposição de que pessoas na condição de intersexualidade, não poderiam gozar de uma boa satisfação de suas vidas, assim como gozam as pessoas “normais”; não seriam totalmente satisfeitas por não poderem se desenvolver plenamente. O que vemos, é que as condições biológicas dos sujeitos intersexuais, diante do discurso vigente, acabam abrindo espaço para as práticas de reconstituição dos órgãos sexuais como algo de extrema relevância para a consolidação do “verdadeiro sexo”. Esse discurso procura agregar esforços em direção à definição do sexo do sujeito intersexual, moldando estes a cultura binarista de nossa sociedade. Diante do enunciado acima, os profissionais de saúde e os familiares, visando a promover a integridade física e emocional do intersexual, são levados a justificar (alguns até mesmo inconscientemente) a prática cirúrgica do ajustamento do corpo ao gênero designado, como sendo esta a melhor opção, ainda que muitas vezes a decisão seja tomada precocemente em casos sem necessidade de urgência.
     Moara Santos e Tereza Araújo (2003) também trazem uma informação instigante sobre um roteiro proposto por Diamond e Sigmundson onde neste há uma afirmação em que os profissionais de saúde e demais envolvidos em casos clínicos de sujeitos intersexuais (principalmente crianças) deveriam tomar como exemplo, o roteiro diz o seguinte:
“temos que ser ’autoridades’ em prover informação e aconselhamento, e não ser ‘autoritários’ nas nossas ações. Devemos permitir ao paciente pós-púbere um tempo para considerar, refletir, discutir e avaliar e, só então, ter a última palavra na modificação de sua genitália, papel de gênero e designação sexual final”.

     Se passarmos a observar melhor e também tentarmos compreender a intersexualidade por esse outro ângulo poderemos caminhar no sentido de uma corroboração bem mais favorável à adaptação integral do indivíduo intersexual e sua inserção nessa sociedade ainda hoje binarista.


Haverá uma postagem mais adiante que trará mais informações sobre como se dá o manejo das cirurgias reparadoras. Aguardem!

Referência bibliográfica


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